Adeus à consciência
Motivação
Há pouco tempo terminei de ler Memórias do Subsolo, do Dostoievsky. Não posso dizer que entendi o livro por inteiro. Quanto mais leio sobre ele (atualmente estou lendo Irmãos Karamázov), percebo minha ignorância ante tantas nuances de sua obra. Pois bem, terei que revisitar esta obra algum dia e reinterpretá-la por inteiro. Por enquanto, faço-me satisfeito com a nota introdutória do livro e outras críticas que ouvi por aí. Elas me norteam um pouco sobre o real significado do livro. Ademais, tenho minha própria interpretação pobre do texto. Ela não me deixa, e, mesmo sem a profundidade toda que poderia ter, ainda me afeta de um modo inexplicável.
Pois bem, o homem do subsolo é um aparente “paradoxilista” (descrição do próprio autor) niilista. Dá a entender que toda a argumentação extensiva gira ao redor desse tema: a atormentação do personagem pela “razão”, ou, como põe no texto, pela “consciência”. Chega a tal ponto incômodo que ele inveja o “homem normal”, que não se aventura em nenhuma reflexão, e acha justificação na própria vida (um absurdo para ele). É nesse excesso de consideração que vive a tormenta:
Juro-vos, senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, um doença autência, completa. […] estou firmemente convencido de que não só uma dose muito grande de consciência, mas qualquer consciência, é uma doença. Insisto nisso.
E o resultado direto dessa “hipertrofia” é a inércia, o que pode ser mais agonizante ainda:
Com efeito, o resultado direto e legal da consciência é a inércia, isto é, o ato de ficar conscientemente sentado de braços cruzados. […] Ah, senhores, é possível que me considere um homem inteligente apenas porque, em toda a vida não pude começar nem terminar coisa alguma. Admitamos que eu seja um tagarela, um tagarela inofensivo, magoado, como todos nós. Mas que fazer, se a destinação única e direta de todo homem inteligente é apenas a tagarelice, uma intencional transferência do oco para o vazio?
Eu sinto que essa agonia gira em torno de uma falta de autencidade. Se não vive ou age, como pode ser autêntico de qualquer forma? Ele é alguém que observa a tudo e todos, “perscruta” todas as coisas sem nenhum fim ou objetivo. Qualquer um que ousa se aventurar tempo suficiente nessas águas perde de vista a perdição que espreita. A conclusão do livro não deixa dúvidas:
Mas com licença, meus senhores, eu não me estou justificando com este todos. E, no que se refere a mim, apenas levei até o extremo, em minha vida, aquilo que não ousastes levar até a metade sequer, e ainda tomastes a vossa covardia por sensatez, e assim vos consolastes, enganando-vos a vós.
Essa é a parte que mais me assola: até onde deixamos nosso excesso de consciência nos levar? Por certo, se nos identificamos com o estado final do homem do subsolo, deve haver algum sinal de preocupação:
Olhai melhor! Nem mesmo sabemos onde habita agora o que é vivo, o que ele é, como se chama. Deixai-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar. Para nós é pesado, até, ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos tal fato um opróbrio e procuramos ser uns homems gerais que nunca existiram. Somos natimortos, já que não nascemos de pais vivos, e isto nos agrada cada vez mais. Em breve, inventaremos algum modo de nascer de uma ideia.
Toda a natureza do paradoxo parece insuportável, e ao mesmo tempo inevitável. A impressão que dá é de ser um caminho sem volta. E é nesse ponto que me vagueiam os pensamentos. Grande vantagem existe na consciência, mas não sem seus pesares. E, ao que me parece, o gosto dela não parece valer a pena. E é isto que tento expressar no poema. Ele, de maneira alguma, faz jus à obra. Por isso, não deixo-o sem uma última citação que completa o que me vem em mente:
Está ansiando pela vida, mas resolve os problemas da existência com um emaranhado lógico. E como são importunas, como são insolentes as suas saídas, e, ao mesmo tempo, como o senhor tem medo! Afirma absurdos e se satifaz com eles […] No senhor há verdade, mas não há pureza […] embora seu cérebro funcione, o seu coração está obscurecido pela perversão, e, sem um coração puro, não pode haver consciência plena, correta.
Que valor há na maior autoconsciência sem o mínimo de virtude e “vida viva”?
Com isso, este é o poema:
Livra-me da tua onisciência!
Insuportável lesão, não te escapas perdão
Não hás redenção, à despóta ilusão
Que te aturdes inteira
Tens a verdade mais derradeira?
Enorme vaidade; tamanha asneira!
Jazes, perdida, em eterna reflexão
Em si absorta, não tens conclusão
Sonho com a libertação da razão
Sucumbirei com veemência
Sem lágrimas de tristeza
Então, à real existência
Hei de viver contente
Darei graças ao estado
Que minha dor tem abafado
Vivo estado inconsciente